quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Mais

Alguns desenhos de V. E. , transportam-me ao universo de opiómano de Jean Cocteau, pois nestes desenhos encontramos a busca do corpo vivido, mesmo se dissociado ou reduzido a uma dinâmica do espaço.
Aqui o homem, ou as figuras humanas, são captadas pelo espaço sem espaço, de uma maneira neurótica, em que a dinâmica "oculta do espaço", dá um sentido ao absurdo.
V.E. como que ilustra alguns dos temas de "A Nova Desordem Amorosa", de Pascal Bruckner, como por exemplo, "o esquife peniano no rio do amor" ou "os corpos incertos" ou ainda "a canónica quimera do orgasmo".
Há a agressão, o perdão, a reconciliação, num jogo de linhas e de palavras, de gritos e de silêncios amordaçados, do desejo fálico transformado em oração. Há um não-lugar para o erotismo feito de espaços de diálogos entre as formas, entre os corpos que se abraçam e beijam ou simplesmente se olham.
Tal como José Gil é considerado o "filosofo da carne" ( foi discípulo de Deleuze ), V. E. poderá ser a desenhadora da carne onde se descobrem as cicatrizes, cesuras como pausas ao fim do primeiro hemistíquio do verso alexandrino ou a última sílaba de uma palavra que começa o pé de um verso latino ou grego.
E dou comigo a tentar encontrar uma correspondência entre o verbal e o visível, a debruçar-me sobre o fantástico na Arte e o erotismo. E apetece-me citar Ahmad  Ashai  " o paraíso do gnóstico fiel é o seu próprio corpo, e o inferno do homem sem fé nem gnose é igualmente o seu próprio corpo".
Paul Klee "escutava os murmúrios que preenchem o silêncio . . . ", V.E., preenche os espaços que desencadeiam em nós e na nossa imaginação a frase de Merleau-Ponty, "ver, é sempre ver mais do que vemos".

Quadros/pinturas

Modesto Mussorgski tinha um amigo, Victor Hartmann, pintor e arquitecto que morreu enquanto uma sua exposição decorria. Em honra do amigo, Mussorgski compôs a célebre suite para piano, "Quadros de uma Exposição".
Eu não componho nada para os meus amigos que pintam, mas escrevo, e agora resolvi pôr aqui vários pequenos textos que escrevi sobre quadros em exposição, sobretudo pintados por um amigo de quem gosto muito mas não só dele.


V. E. consegue dizer a pintura e o desenho, como só ela, criando um alfabeto de imagens e símbolos, mas também de palavras, muitas vezes invertidas, desconstruídas, onde se pode ler a angústia perante o corpo interdito
Esse "locus infectus" da tradição, e a "virgo non intacta" que é nestes trabalhos feito de ansiedades e sonhos perdidos, feitos de sonhos por conseguir, feitos do que por fim alcançam : o traço que cria, que imagina e simboliza, que sente e faz sentir uma alma que procura.
Depois vem a cor, quase sem cores, no fundamental, primordial preto e branco, deixando o verde e o encarnado para o mais fundo de uma semiótica, que transporta em si mensagens para serem interpretadas por quem, na impossibilidade de simbolizar, diaboliza.
Ao definir com este alfabeto, emoções e sensações, que no fundo têm a ver com todos nós, V.E. consegue transmitir uma inquietação criadora, que nos faz pensar em como ser de outras formas, formas ao nosso alcance mas de tantas formas reprimidas.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Contra a indiferença

Hoje é o último dia deste ano de 2017, e como não sei se por aqui ainda volto a passar hoje, aqui fica mais um dos meus apontamentos, que registo num caderninho que trago sempre comigo, para depois, na primeira ocasião postar.
E mais uma vez me sinto agressivo perante tudo o que me choca neste mundo imundo em que vivo, e me faz pensar que o facto de qualquer homem ser um ser pensante, criativo e social, não é apenas uma característica como podem haver muitas outras características, mas fundamentalmente uma condição, a tal condição humana de que já falou André Malraux.
Depois há este meu estar sempre em luta contra a indiferença, contra a miopia dos olhares da gente pequenina de que tantas vezes me sinto rodeado, para que os meus esforços de ser diferente, não sejam esperanças abortadas, mas possa sentir sempre que quando piso o chão o reconheço sagrado, numa eterna sagração de uma primavera que procuro trazer sempre dentro de mim, para nunca me ver encurralado dentro dos meus próprios raciocínios, até te poder ver, bem à minha frente, a sorrir-me, mulher que tanto amo há tantos anos. E foi nesse teu sorriso que me deitei e descansei das minhas más disposições contra a indiferença e a miopia esperando não ter que me confrontar com muitas no ano que está a chegar.

sábado, 30 de dezembro de 2017

Ad loca infecta

Um dos meus sonhos é o de poder ir em peregrinação todos os dias a todos os lugares santos ou não. Fazer mesmo a minha peregrinação "ad loca infecta", gostando como gosto de ver tudo, experimentar tudo, ir a toda a parte e ser tudo de todas as maneiras.
E nessa peregrinação ir só eu, levado por mim ao colo, dentro de mim, para por esses lugares me ir encontrando e à minha realidade.
E mesmo quando por fim me fosse possível encontrar-me e à minha realidade, partir sem perder tempo para uma nova peregrinação, uma qualquer, porque a realidade não me satisfaz, qualquer que ela seja.
E lembro-me daquele extraordinário pequeno poema de Reinaldo Ferreira e de que tu, meu amor, tanto gostas, e que diz

"Quando ao nada empresto
A minha elementar realidade
O nada
É só o resto".


E fico a sonhar, porque quando estou a sonhar é apenas um dos meus sonhos que sonho. Nada mais.

Gostava de saber

Muitas vezes dou comigo a pensar como gostava e seria bom de ser capaz de me exilar num país distante, que não pudesse ser encontrado em nenhum mapa, numa ilha perdida num oceano qualquer, longe de tudo e de todos.
Mas amo, e amar é em si mesmo uma prisão, estou certo que toda feita de oiro e pedrarias, mas de onde não posso fugir de tal maneira estou amarrado a quem tanto amo. E não posso porque muito simplesmente não quero.
Resta-me isolar-me dentro de mim, como se dentro de mim houvesse de facto a tal ilha, perdida, num oceano qualquer. E há, estou convencidíssimo que há, e onde eu posso como Jorge Luís Borges, jogar aos infinitos, só eu e tu, uma eterna paciência, sentados a uma mesa que guardamos sempre dentro de nós, sempre com o mesmo pano por cima, as mesmas cartas e oh! maravilha, sempre o teu sorriso que adoro, os teus olhos azuis que me enfeitiçam há tantos anos, e essa mão que com a minha joga esse jogo que nunca acaba porque também nunca começou.
O jogo é esse, ser uma utopia, tal como a que Tomaz Morus imaginou a partir das descrições feitas por um navegador português chamado Rafael Hitlodeu, e que por não existir, não ter lugar senão dentro da sua imaginação -  e agora só dentro da minha - e a que por isso ele chamou Utopia.
Ao longo da História sempre houve utopias e muitas vezes foi através delas que o mundo se foi transformando, sendo outro mundo para que as gerações que nasciam pudessem também sonhar.
Mas eu não sou utópico, mas ucrónico. Não preciso de espaço mas falta-me o tempo. Ou o meu tempo ainda não chegou. Não sei, mas gostava de saber.

Às vezes penso

Às vezes penso que as pessoas deviam deixar crescer dentro de si o fogo da paixão, e depois, nesse calor, vivê-la, mesmo que isso implique dúvida, insegurança e até medo.
A paixão é quanto a mim a matriz e a geratriz de tudo o que nasce para viver e Ser. De outro modo, essas pessoas são como as brasas de uma lareira: quando quentes aquecem, mas quando se deixam esfriar só sujam.
É com pena que às vezes vejo as pessoas a não serem capazes de evoluir, de serem mais elas deixando-se embrulhar na vida. Pela vida, guardando sempre a distância que deverá sempre haver entre elas e a vida.
Às vezes penso que há pessoas que são como aqueles pássaros de estimação a quem os donos levam a passear nos jardins. Os pássaros realmente mudam de paisagem mas não mudam de gaiola.

Quando me escrevo

Quando me escrevo e me medito, reconcilio-me comigo, com o mundo que me rodeia e de que tantas vezes não gosto.
Quando me escrevo e me medito, volto a encontrar-me e a sentir-me bem comigo mesmo, volto a pensar que alguém que amo muito e há tantos anos me vai ler, e vai gostar mais de mim e eu dela, e assim posso pensar em anichar-me na sua sombra e ter um pouco mais de paz.
Quando me escrevo e me medito sinto-me mais perto de ti e sinto-te mais perto de mim Sinto que somos a nossa própria transcendência, a verdadeira transcendência do ego de que fala Sartre. É a consciência de si e o conhecimento de si ou de nós, enquanto seres pensantes e criativos, únicos e irrepetíveis mas que nada nos impede de nos imaginarmos um.
Por Amor tudo é possível tudo é belo e tudo é bom. O kalos kai agathos da Grécia clássica.
É por Amor de ti que me escrevo, me medito e Sou.




A banalidade

Sou um inimigo nato da banalidade, de tudo o que para mim possa ser vulgar. A mesmice, a pequenez de espírito, o viver a vida só pela metade, o não ser capaz de ser si mesmo e fugir à carneirada, o poder voar como as águias mas contentar-se em ser ave de capoeira, irrita-me, quase me leva a gritar a plenos pulmões contra a estupidez humana, na praça pública e envergonhar aqueles a quem sirva a carapuça. Mas como disse Schiller e eu cito no meu primeiro livro "A Decadência do Sonho",  "até os deuses lutam em vão contra a estupidez". E às vezes em pessoas que eu penso que pensam, que são inteligentes e minimamente cultas. Apetece-me bater-lhes, ser bruto, abaná-las, não para caírem no chão, mas para caírem em si.
Por causa disso tenho arranjado inimigos (não diz um provérbio árabe que quem não tem inimigos não tem valor?), vivido mal entendidos, apedrejado como iconoclasta de mitos, preconceitos e de farisaísmos hipócritas. Mas não me rendo, não consigo ser banal, e no dia em que o for, então é porque estou a igualar-me a essa maioria que desprezo. Não, não sou, nem espero ser algum dia, nem politica nem socialmente correcto. Não embarco nessas fantochadas, senão, não sou eu, mas uma outra coisa qualquer, que os outros fizeram de mim. E como disse Jean Paul Sartre no seu "Testamento" o importante não é aquilo que os outros fazem de nós, mas o que nós mesmos conseguimos fazer daquilo que os outros fizeram de nós. É mais ou menos isto, mas fica o sentido.
Igual à carneirada? Espero que nunca. Só serei igual aos outros quando morrer, até lá Deus deu-me talentos para pôr a render.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A ternura

A ternura que tantas vezes se sente apenas num abraço ou num beijo de despedida é também uma obra de arte, com o seu quê de aventura e vagabundagem, da vivência de uma infinita liberdade, numa convivência e numa cumplicidade só entendida por quem se abraça ou se beija, que são outras notas de música, para além das que Guido de Arezzo criou, e que são cores e telas, poemas calados e escondidos nos sentidos de quem ternamente ama, ou em que até se esculpem caras, gestos e sorrisos, olhares, e tudo isto numa ribalta que é a vida.
A ternura que se sente por uma criança ou por alguém que se ama desmesuradamente, mas que também se pode ter por um quadro, por uma escultura ou por uma nota musical, por uma voz que canta ou por uns olhos que choram, por um soneto ou um conto de Natal, pelo olhar perdido no nada de um velho pobre e vagabundo. Talvez nisto esteja apenas contida a Arte de Sentir.

A relação

Ontem disse algumas coisas sobre Arte, e se abordei a música, a pintura e sobretudo a minha paixão pela escultura, hoje continuo refiro-me à arte da relação, uma arte de quem todos falam mas de que possivelmente poucos conhecem em profundidade já que ainda por cima sou um velho apreciador, leitor e estudioso da obra e do pensamento de Martin Buber, que além de ter escrito um livro que teve uma grande influência no meu pensamento, "EU-TU", disse que para além do que vem escrito no Génesis, que "no princípio era o verbo", ele acrescentava que "no princípio era a relação". Foi muito com o pensamento dele e de mais alguns grandes pensadores do século XX, que fundei em Portugal a Licenciatura em Psicopedagogia Curativa, hoje Pedagogia Clínica, dando o nome à profissão reconhecida em Diário da República como a de Pedagogo Clínico. aliás o quarto país da Europa, já que só existia na Alemanha (onde fiz um mestrado e conheci esta disciplina), na Suíça e na Bélgica.
Mas falava eu de relação, e por extensão, da arte do convívio, quase que numa continuação da "Arte de Amar" de Ovídio. E na relação basta o olhar, como nos é hoje bem patente, o olhar, só o olhar que havia na paixão que Da Vinci manteve longos anos com o jovem Gian Giacomo Caprotti, conhecido apenas por Salai.
Os traços que se fazem com os gestos, as palavras que se dizem e chegam a ser ternas melodias, os pensamentos que se expressam e se comunicam cheios de coloridos que podem fazer lembrar campos de flores, por exemplo de girassóis, à Van Gogh, além do que fica por verbalizar porque só os olhos dizem, às vezes com vergonha de não serem entendidos, a relação, o convívio, e que é muitas vezes um fado falado como o que tão bem sabia dizer João Vilaret, ou nos "Quadros de uma Exposição" de Modest Mussorgski, em honra de uma relação de grande amizade que ele tinha por Victor Hartmann, arquitecto mas também pintor.